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“O azoto é como ‘O Padrinho’ da poluição: vemos os resultados, mas não vemos o Padrinho”: Mark Sutton em entrevista

17/06/2017

Note: this interview is available in English here.

Entrevista por Marta Daniela Santos. Tradução do inglês por Marta Daniela Santos.

Todos estamos familiarizados com os impactos globais das alterações climáticas e das emissões de dióxido de carbono. Mas…sabem que existe outro problema grave de poluição, a ocorrer neste preciso momento?

A poluição por azoto é considerada como um grande desafio para o século XXI, com múltiplos impactos relacionados entre si, à escala global. A boa notícia é de que existem coisas que podemos fazer no nosso dia-a-dia para contribuir para a sua redução.

Nesta entrevista, Mark Sutton (Centre for Ecology and Hydrology, Edimburgo, Reino Unido) explica porque é que a poluição por azoto é um grave problema ecológico - e o que está ao nosso alcance fazer sobre isto. Mark Sutton estuda há mais de três décadas a emissão, o comportamento e o ciclo do azoto na atmosfera, liderando vários projetos internacionais nesta área. O seu trabalho toca em diversas áreas e, recentemente, Mark Sutton focou-se na compreensão das relações entre os diferentes compostos de nitrogénio no ambiente.

Mark Sutton foi orador convidado da training school “Global and long-term effects of nitrogen on ecosystems”, organizada pelo cE3c-FCUL, que teve lugar em Lisboa entre 15 e 26 de maio, 2017.

 

O debate público sobre grandes mudanças ambientais está focado principalmente nas alterações climáticas e nas emissões de dióxido de carbono. Mas o azoto é um dos maiores desafios deste século, não é? Porquê?

Bem, nós precisamos de azoto para viver. Uma das formas através da qual alimentamos a população mundial é com fertilizantes azotados, e estimamos que, de acordo com as dietas atuais, o azoto permite que metade da população mundial esteja viva. Ou seja, sem estes fertilizantes teríamos um problema: teríamos dietas muito diferentes e não haveria comida suficiente.

Mais de 78% da nossa atmosfera é feita de azoto, mas corresponde a duas moléculas de azoto juntas: N2, com uma ligação tripla no meio, o que o torna extremamente estável. Porque não é reactivo, não o podemos usar para cultivar alimentos. Em vez disso, recorremos a azoto em formas utilizáveis, como por exemplo a amónia, formas a que chamamos de azoto reactivo. Se fizermos reagir hidrogénio (H2) e azoto (N2) a pressão e temperatura muito elevadas, obtemos uma percentagem significativa como amoníaco, NH3. Uma reacção química, três Prémios Nobel: Fritz Haber [Prémio Nobel da Química em 1918], que descobriu a reacção; Carl Bosch [Prémio Nobel da Química em 1931], que a transformou num processo industrial, e mais recentemente Gerhard Ertl [Prémio Nobel da Química em 2007], que identificou e optimizou o processo catalítico que permite melhorar o desempenho desta reacção. Esta reacção produz todo este amoníaco, que leva ao fertilizante que mantém viva metade da população mundial.

Tal como no caso das alterações climáticas, quando falamos sobre o aumento de CO2, no caso do azoto estamos a falar de alterações importantes ao longo do último século. Com a produção em massa de fertilizantes azotados após a década de 1950, duplicámos a quantidade de compostos de azoto no mudo. Eu diria que as alterações climáticas são uma questão fácil. Talvez haja quem não esteja de acordo, mas eu digo isto no sentido de ser um problema muito focado: queimar coisas leva à produção de dióxido de carbono, o que leva às alterações climáticas. É complicado resolver este problema, mas fácil de explicar. Já em relação ao azoto, o problema é que está em toda a parte e a causar todo o tipo de coisas. É como ‘O Padrinho’ da poluição: vemos os resultados, mas não vemos o Padrinho”. [risos]

É uma boa analogia!

E quais são os impactos da poluição por azoto à escala global?

Nós usamos um acrónimo para nos ajudar a lembrar: WAGES. ‘W’ significa ‘poluição da água’ [water]. Quando há uma fuga elevada de nitratos para a água, a qualidade da água potável começa a diminuir. Além disso, quando estes nutrientes chegam ao mar começamos a perder a biodiversidade na água: causam um aumento excessivo do número de algas, o que esgota o oxigénio disponível na água e faz com que os peixes morram.

O segundo é ‘A’, para ‘poluição do ar’ [air pollution]. Primeiro temos os óxidos de azoto, que são tóxicos. Em segundo lugar temos o gás amoníaco, que é libertado dos fertilizantes e do estrume e é tóxico para as plantas.

O terceiro, ‘G’, significa ‘gases com efeito de estufa’ [greenhouse gases]. O óxido nitroso, N2O, é um composto que resulta da perda destes compostos de azoto, e que por molécula tem 300 vezes mais efeito de estufa que o dióxido de carbono. A boa notícia é que não existe tanto N2O como existe CO2. Mas persiste durante muito tempo na atmosfera. A partir do momento em que é emitido, persiste na atmosfera por várias centenas de anos. E é um desafio reduzir estas emissões.

‘E’, para ‘ecossistemas’ [ecosystems]. Depois de o azoto evaporar para a atmosfera, regressa ao solo e pousa na vegetação natural. E as flores e musgos sensíveis acabam por morrer. No meu próprio país [Reino Unido], algumas das plantas mais sensíveis são os líquenes e os musgos, que morrem mais rapidamente.

E finalmente, temos o ‘S’, para ‘solos’ [soils]. O solo é, claro, um mediador para muitas mudanças. Aqui temos duas coisas. Uma é que o azoto pode acidificar o solo, o que o torna menos bom para as espécies nativas e para a agricultura. A outra coisa, é que a qualidade do solo não tem só a ver com muito ou pouco azoto; tem também a ver com a desigualdade no nível de azoto. Algumas áreas estão saturadas, enquanto outras áreas em África não estão a receber o suficiente; está a ser retirado mais azoto do solo do que está a ser colocado de volta, esgotando o solo e conduzindo à sua erosão.

Trata-se assim de um problema com diversas implicações. E normalmente nós conhecemos estas implicações, mas não sabíamos que o ‘padrinho da poluição’ estava envolvido em todas elas. Na Europa, a eficiência do sistema alimentar é de cerca de 20%. Isto significa de 80% são perdidos como poluição para a água, para o ar, gases com efeito de estufa, para os ecossistemas, para os solos. Temos um sistema extremamente ineficiente - e caro.

Uma das coisas que fizemos [publicado no European Nitrogen Assessment] foi tentar estimar os custos sociais da poluição por azoto na Europa. Primeiro obtivémos números entre 70 e 320 mil milhões de euros por ano, para a Europa. Tivémos uma boa cobertura por parte da imprensa, mas os políticos não ficaram particularmente interessados. Penso que foi porque eles pensaram, bem, na verdade ninguém está mesmo a pagar esses números. É um valor mais pequeno que parece atrair melhor os políticos: o puro poder financeiro do azoto que o agricultor perde. Cerca de 14 mil milhões de euros de prejuízo por ano devido a perdas de azoto na agricultura europeia. Como comparação, o subsídio total para a agricultura na Europa é de 57 mil milhões de euros. Isto significa que 25% do orçamento europeu para a agricultura é perdido como poluição por azoto. Ou, se preferirem: a agricultura representa 40% do orçamento total da UE, o que significa que as perdas de azoto representam 10% de todo o orçamento da UE.

Esse é um número que de facto chama a atenção.

Sim, porque neste momento é dinheiro palpável. De qualquer forma, o nosso trabalho é consciencializar as pessoas. Veja, demorei três segundos a explicar as alterações climáticas, e estou a demorar vários minutos a explicar a poluição por azoto, mas o azoto é um desafio muito rico e diversificado. E é também um problema de comunicação, porque precisamos do azoto para viver, mas estão a haver fugas por todo o lado e está a causar todo o tipo de poluição.

E o que pode ser feito para minimizar este excesso de azoto?

Estamos a trabalhar nisso com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Acabámos de criar um grande programa, com cerca de 80 instituições parceiras por todo o mundo, que irá decorrer durante os próximos 5 anos. Trata-se do International Nitrogen Management System (INMS). É algo equivalente ao Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas [IPCC, em inglês], mas o nosso trabalho passa por estabelecer ligações entre os cinco aspectos do WAGES. Estamos a começar a reunir pessoas de diversas disciplinas que não costumavam falar entre si - poluição do ar, poluição da água, gases com efeito de estufa, etc - e a pensar sobre quais as opções de gestão que podem ser boas para vários aspectos do WAGES.

Já identificámos algumas coisas importantes a serem feitas. A primeira coisa é: quando espalhar o seu fertilizante, use um bom método de difusão, com técnicas de baixa emissão. Isto é algo bastante simples, a questão é: porque é que não o fazemos já? Penso que se trata de uma questão social: algumas pessoas fazem-nos, mas muitas outras não. A tecnologia já está disponível há vários anos e, dependendo do método utilizado, pode reduzir as emissões entre 40% a 70%. Não só é bom para o ar, como também é mais preciso. Isto significa que também haverá uma menor sobreposição com cursos de água, ou seja, também é bom para a poluição da água. Além disso, estes métodos são relativamente baratos, e os agricultores podem imediatamente ver os benefícios.

Outra fonte de poluição de azoto são os automóveis. Há uma série de discussões e escândalos sobre a poluição produzida pelos carros. Os fabricantes de automóveis foram pressionados pela regulamentação, mas agora lutam para ir mais longe. Mas eu olho para esta questão de forma diferente. Eu digo o seguinte: quando estamos a reduzir os óxidos de azoto emitidos pelos automóveis, estamos a destruir um recurso. Mas afinal é poluição ou é um recurso? NOx é uma forma de azoto. O que eu digo é que, em vez de partirmos de 1kg de azoto na forma de NOx, no valor de €1, e gastarmos outro euro para o destruirmos, tendo como resultado nada… vamos capturá-lo e usá-lo para fertilizantes. Estamos a trabalhar na tecnologia para a levar mais longe. O ponto de partida seria com indústrias, grandes fábricas. Por enquanto ninguém está a fazer isto como um negócio em grande escala, mas devemos trabalhar e investir. As emissões anuais de óxido de azoto no mundo representam cerca de 40 milhões de toneladas de azoto [ver Our Nutrient World, 2013], portanto são cerca de 40 mil milhões de dólares de recursos, por ano, que podem ser transformados num mercado.

Porque é que ainda não se está a investir nesta tecnologia?

Penso que se trata de uma mentalidade com uma vista curta. Devemos mudar a mentalidade. Para os automóveis, imagine que existia um cartucho no seu carro que, após alguns milhares de km, é retirado na garagem para reciclagem. Os cartuchos eram aquecidos para retirar todo o NOx, e isto poderia ser feito como parte de uma política de reciclagem. Mais uma vez, a mensagem do azoto passa sempre pela integração.

Existem outros exemplos, de coisas que possamos fazer no nosso dia-a-dia para reduzir a emissão de azoto?

Sim: as nossas escolhas alimentares. Com o dióxido de carbono e as alterações climáticas, a maior parte do problema tem a ver com energia - transportes e electricidade. Mas a maior parte do azoto está associada aos alimentos, e isto significa que as nossas escolhas alimentares são incrivelmente poderosas. Nós avaliámos isto no relatório 'Nitrogen on the table' [“Azoto à mesa”], no qual analisámos o que aconteceria na Europa de acordo com diferentes escolhas alimentares.

Uma das formas centrais de olhar para isto é de acordo com um cenário demitariano [demitarian]. ‘Demi’ significa metade. E se comermos metade da carne e productos lácteos, mas as mesmas calorias, porque introduzimos também outros alimentos? Apenas esta alteração na dieta iria reduzir as emissões de amoníaco na Europa em 40%, as nossas emissões de gases com efeito de estufa em 20% a 40%, e a nossa poluição por azoto em 40%. São grandes mudanças.

De acordo com a referência dos programas de Investigação Mundial em Cancro [World Cancer Research Programs], descobrimos que os Europeus consomem 207% da dose recomendada de carne vermelha. Se passarmos a metade, de acordo com o cenário demitariano, descemos para 107% da dose recomendada, o que é suficiente. Nós, como cientistas, não estamos a dizer às pessoas para pararem de comer carne. Cada pessoa deve poder escolher quanto come e o que come. Mas se reduzirem a metade, reduziriam a sua poluição em 40%. Se todos nós fizéssemos isto, iríamos também duplicar a eficiência do azoto no sistema Europeu, de 22% para mais de 40%. E talvez economizemos algum dinheiro, que podemos utilizar para tornar a nossa dieta mais rica e diversificada.

Na verdade nós fazemos isto frequentemente em conferências - trabalhamos com o chef com antecedência. Fizémos isso em Edimburgo, onde o chef decidiu passar de 180g de carne por pessoa para 60g por pessoa. No final da conferência fizémos um questionário - para averiguar se os participantes comiam carne com muita ou pouca frequência, ou se não comiam carne, e a pergunta-chave: “Sentiu que a quantidade de carne servida era insuficiente?”. 92% 92% das pessoas respondeu que não - ou seja, estavam satisfeitos com a quantidade de carne servida [Dos restantes, 4% sentiu que a carne servida era insuficiente, e 4% não tinha uma opinião clara].

Fizémos isto alguns anos depois em Kampala, a capital do Uganda, na conferência N2013. E foi muito interessante, porque em África existem muitas pessoas que não têm o suficiente para comer. Em África a questão não é a média, mas sim a estrutura demográfica: as pessoas ricas têm uma ingestão de carne muito elevada. Como comparação, o ponto de partida em Edimburgo tinham sido 180g de carne; em Kampala, como convidados de honra, recebemos 270g de carne. E, adoptando o cenário demitariano, passámos de 270g para cerca de 130g de carne por pessoa.

Ao longo de vários meses de antecedência, os nossos parceiros em África trabalharam com o hotel da conferência para avaliar qual era a dieta normal e como planear o menu que teríamos tendo em conta o menor consumo de carne. Diminuímos o consumo de carne para metade, mas também tivemos um maior desperdício de comida do que numa conferência normal no mesmo local. Achámos isto muito interessante, porque significou que os participantes aceitavam comer menos carne e iam até além disso, pois não estavam a consumir todos os alimentos que lhes eram dados.

Ao ouvi-lo falar sobre isto, estou a pensar em possível aplicações - como por exemplo em cantinas escolares.

Sim, claro. Em Edimburgo descobrimos que, com menos carne, gastaríamos menos dinheiro. Mas, em vez de economizar esse dinheiro, pagámos o mesmo preço, o que permitiu ao chef comprar outros ingredientes, mais ricos e diversificados. Ou seja, não economizámos dinheiro mas preparámos melhores refeições. E todos gostaram da comida. Mas uma cantina escolar talvez opte pela outra via - e economize dinheiro. Este cenário dá-lhe a hipótese de fazer uma escolha.

Ou seja, é uma situação em que se sai sempre a ganhar.

Absolutamente. Agora, é preciso ter em atenção que algumas pessoas que vendem carne querem impedir isto. Lembro-me de uma parte interessada que dizia que não há razão para que não se coma toda a quantidade de carne que se quiser. O argumento é que não existe nenhum risco para a saúde associado ao consumo de demasiada carne. Mas posso dizer que, do ponto de vista ambiental, quanto menos carne comermos, menor é a poluição. Isto é interessante, porque para muitas pessoas a alimentação e a saúde são questões mais pessoais que o meio ambiente. Nós, como cidadãos, geralmente preocupamo-nos mais com a nossa saúde do que com o meio ambiente. Mas os argumentos ambientais são extremamente sólidos. Desta forma, as mensagens de saúde e as mensagens ambientais complementam-se.

Ou seja, o objetivo é tornar o meio ambiente numa questão pessoal.

Sim! E eu acho que as nossas escolhas alimentares têm esse efeito, porque cada pessoa pode escolher por si. A razão pela qual eu quis uma nova palavra, demitariano [demitarian], é porque ‘vegetariano’ é normalmente sobre tudo ou nada. Mas para o argumento ambiental, a questão incide sobre o quanto. ‘Demi’ traduz uma ambição simples - passar a metade.

Para concluir: foi convidado para ser um dos oradores desta training school [“Global and long-term effects of nitrogen on ecosystems”, 15-26 Maio 2017, Lisboa, Portugal]. Qual considera ser a importância destas training schools?

Uma maior tomada de consciência. E o que me entusiasma é que as pessoas nestas training schools vêm de diferentes áreas. Uma pessoa saberá mais sobre água, outra sobre ecossistemas, e eu encorajo-os a estabelecer pontes e aprender a partir da perspectiva de outra pessoa. Todos nós temos a nossa área favorita. Mas se nos tornarmos mais conscientes, podemos trabalhar em conjunto no futuro. 

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